OUVIDORIA POPULAR

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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

REFENS DA SECA EM PERNAMBUCO

Reféns da seca III
Os traços mais assemelhados com o Fabiano, do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, se espalham agora pelo Alto Sertão, onde penetramos desde ontem deixando para trás as terras agrestinas, que antes e não mais hoje, eram diferenciadas, mais férteis e amenas. A mais longa seca dos últimos 50 anos, que misturou Agreste com Sertão, é um martírio, uma dura batalha pela sobrevivência.
As Marias, com a mesma força dos Josés, fazem serviços braçais de homens. E não se resignam facilmente, como Maria de Lourdes, 38 anos, oito filhos nas costas para dar de comer, encontrada na estrada com uma lata de água na cabeça às oito da manhã, já repetindo o mesmo percurso, de um chafariz até a sua casa, de 3 km, pela quarta vez.
Maria não tem bolsa família nem bolsa estiagem, nem tampouco dinheiro na bolsa. Mas tem dignidade e esperança. “A minha esperança é por chuva e dias melhores. Quando chove neste sertão que a gente ama tanto, se vive melhor”, diz ela.
Mais uma Maria, agora de sobrenome Cassimiro da Silva, 57 anos, trava a batalha pela sobrevivência empurrando uma carroça com seis sacos de folha seca e capim seco, retirados com as próprias mãos calejadas da terra do patrão, a 5 km de sua casa.
De estatura pequena, sua vista quase não alcança a estrada pela frente tomada pela tulha ensocada para matar a fome de uma jumenta, uma égua e dois cabritos, como assim narrou, que cria no sítio Manejo em Jericó, que antes fosse a Jericó que Jesus, o Salvador, pisou em seu solo, mas é a Jericó dos sem nada: sem teto, sem água, sem, sem trabalho, sem o pão à mesa.

Diferente da Maria da lata d´água na cabeça, que pariu oito filhos, a de Jericó não deixou herdeiros para viver no mundo de vidas secas. É solteirona, mora com o pai aposentado que, aos 92 anos, segundo ela, anda lúcido e resistente, com uma memória fantástica, capaz de lembrar-se das atrocidades de Lampião por essas bandas.

No vasto mundo euclidiano das Marias, ainda na vila com o sugestivo e emblemático nome de Jericó, pertencente ao município de Triunfo, mas já quase em terras paraibanas, Maria Lúcia da Silva, 34 anos, três filhos, virou refém do bolsa família. Ganha R$ 134 por mês, mas gasta quase todo com remédio para salvar a vida de um dos filhos que nasceu com uma doença degenerativa.
“Levo meu filho ao médico em Serra Talhada num pau-de-arara. Nunca vi tamanho sofrimento para o bichinho, mas vou fazer de tudo para deixá-lo saudável e pronto para a batalha da vida”, afirma Maria Lúcia, que mora numa vila sem água nas torneiras e sem iluminação pública. “Isso aqui de noite vira um breu”, conta.
No trajeto até a barragem de Brejinho, que abastecia Triunfo e secou literalmente, encontrei, já no entardecer sertanejo, Edinalda Alves de Siqueira, de 21 anos, ninando numa rede o filho menor de dois anos (apesar de jovem, já tem dois herdeiros). Ela contou que fez a travessia contrária dos retirantes nordestinos – regressou de São Paulo para o seu torrão natal – porque o seu marido havia ido cumprir uma empreitada: o corte de cana numa usina paulista.
“Ainda ficamos três anos por lá, mas não gostei. Prefiro o sertão. Aqui, a gente sofre, mas é tratada como gente e não como bicho feito lá em São Paulo”, desabafa. O marido Jonas Alves passou a cortar cana em Triunfo, também de empreitada, para pecuaristas que trocaram a palma, devastada pela seca, por palha de cana para matar a fome dos animais.
Edinalva só tem o primário, mas gostaria de voltar a estudar um dia, porque sonha em arranjar um emprego para ajudar o marido nas despesas de casa. “Abandonei a escola para acompanhar o meu marido e cuidar dos filhos, mas não quero ficar ignorante para o mundo. Tenho que estudar”, desabafa.
No sertão, transporte escolar é caminhão pau-de-arara. Foi nele que encontrei, misturado aos adultos, o garoto Erick Rodrigues da Silva, de apenas 8 anos, que cursa o segundo ano do primeiro grau numa escola de Triunfo. Filho de um agricultor que virou taxista motoqueiro, Erick mora no sítio Retiro e estuda na cidade em turno integral, para garantir a merenda pela manhã e no almoço.
Ele desconhece que o transporte improvisado no pau de arara é ilegal. “É o único meio que a gente tem para chegar à escola”, diz. Erich quer ser gente na vida. “Meu sonho é ser doutor, não sei ainda de que”, observa.
A seca transformou o agricultor Janailson Evangelista da Silva, 27 anos, num faz de tudo. “Carrego água, arranco mato, carrego areia, enfim, faço tudo, só não faço roubar, porque meus pais me ensinaram que não se deve tomar o alheio”, diz ele, encontrado na praça central de Triunfo fazendo o trabalho braçal do transporte de água numa cacimba.
A maior seca dos últimos 50 anos só foi ruim para os bichos, como diz o sábio trabalhador rural aposentado Francisco de Assis dos Santos, 63 anos, do sítio Passagem, entre os municípios de Serra Talhada e Triunfo. E ele, na ponta da língua, mostra as razões e as suas justificativas com um argumento irrepreensível.
“Essa seca, que tanto falam por aí, fez muita gente rica por aqui. Tem bolsa-família, bolsa estiagem, seguro safra, aposentadoria disso e daquilo outro. Nunca vi tantos benefícios. A seca, portanto, não tá fazendo ninguém morrer de fome. Quem morre de fome mesmo é o gado. De fome e sede, porque não há pasto e não tem água. Mas, o povo, não. Tá todo mundo rico, graças ao presidente Lula”, diz.
“Seu” Chico tem lá suas razões, mas o Governo, ao criar programas assistencialistas, poderia ao mesmo tempo enfrentar a seca com políticas arrojadas, programas duradouros e não paliativos, que só viciam o cidadão e escraviza a gente sertaneja.

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